03 outubro 2006

Gestor dos tribunais: público ou privado?

Os tribunais vão passar a ser geridos de acordo com princípios de gestão privada. O Governo quer entregar essa função aos secretários de carreira, mas não falta quem defenda que o melhor era uma gestão privada.
Uma nova circunscrição territorial, um tribunal principal, vários tribunais "satélite" e um novo interveniente na cadeia: o gestor dos tribunais, que, acreditam o Governo e a oposição, será uma das varinhas mágicas capazes de resolver de vez alguns dos sérios problemas da Justiça. A começar pelo que respeita à gestão, promovendo-se a introdução de princípios e filosofias com que se gere qualquer empresa privada.
Com a substituição das actuais comarcas por uma nova circunscrição judicial, que coincidirá com as NUT III, num total de 32, toda a filosofia actual de gestão dos tribunais terá de ser alterada. Cada região terá um tribunal principal, em tomo do qual vão "girar" os restantes, como se de satélites se tratassem. O tribunal principal terá um juiz presidente e, depois, cada um dos outros tribunais nas diferentes localidades daquela região terão também juízes responsáveis. A grande novidade será a introdução da figura do gestor do tribunal, para o qual serão transferidas funções administrativas hoje entregues ao juiz presidente.
O sistema só estará operacional lá para 2008, porque entretanto "será preciso apresentar e concretizar as alterações legislativas necessárias", explica Conde Rodrigues, secretário de Estado da justiça. As linhas gerais do novo sistema constam do Pacto para a justiça (ver caixa), mas falta acertar detalhes. Por exemplo, se deve haver um gestor por tribunal ou se pode acumular vários tribunais, como admite Fernando Jorge, do Sindicato dos Funcionários Judiciais.
Quem deve ficar com a gestão? Consensual é que a tarefa deve ser entregue a quem tenha formação em gestão, coisa que os juízes não têm.
À partida, "o objectivo é que sejam secretários de carreira, que tenham vocação e que possam vir a ter formação suplementar em gestão", diz Conde Rodrigues. Uma decisão que os funcionários aplaudem: a prata da casa, dizem, é mais do que suficiente. "De entre os oito mil oficiais de justiça, há certamente 200 que possam desempenhar essas funções., defende Fernando Jorge. Conde Rodrigues assina por baixo: "Ir buscar gestores ao sector privado está fora de questão; o Estado tem muitos recursos humanos e é presido usá-los", diz.
Há quem, mais radical, apoie uma "privatização em sentido mais alargado. O presidente da Associação Sindical dos Juízes (ASJ), admite que "o mais provável é que os gestores tenham de vir do sector privado", porque, diz, "não conheço nenhum quadro de gestores da Administração Pública onde se possam ir recrutar".
Também o advogado e professor universitário Paulo Olavo Cunha, não tem dúvidas de que o ideal era avançar com um modelo semelhante ao já adoptado para alguns hospitais, que sendo públicos, têm uma gestão privada (caso do Amadora/Sintra). "Pode perfeitamente haver abertura para uma privatização em tudo o que diga respeito aos aspectos processuais, desde que se salvaguarde sempre a publicitação da justiça, que é fundamental preservar", afirma. O mesmo é dizer que a aplicação da Lei é tarefa dos juízes e tudo o que sejam poderes judiciais têm de ficar de fora. A questão está em saber de que forma esta gestão privada pode ser conciliada com a actual legislação, sobretudo com as normas constitucionais (ver caixa sobre o princípio do Juiz Natural).
O que prevê o Pacto para a Justiça
O "Será assegurada uma gestão especializada [dos tribunais] através de gestor profissional dedicado a uma ou a um grupo de circunscrições, conforme for justificado, nomeado por concurso, pelo conselho superior da Magistratura, e que fica colocado sobre a dependência do Juiz Presidente. O novo modelo de gestão deve ser aplicado com a instalação das novas circunscrições".
Estas novas circunscrições serão criada no âmbito da revisão do Mapa Judiciário, reforma calendarizada para 2007 dentro do previsto no acordo assinado entre os dois maiores partidos políticos com assento parlamentar. Como critérios de delimitação territorial de partida serão usadas as NUT III (para as circunscrições territoriais de base, que serão 32) e as NUT II (pelas quais alinharão os distritos judiciais).
Prós e contras
Entregar a gestão dos tribunais nas mãos de gestores privados, recrutados por concurso público, seria o ideal." Ainda que tenha algumas dúvidas sobre o alcance constitucional da medida, o jurista Paulo Olavo Cunha acredita que esta seria a melhor forma de resolver o problema da gestão dos tribunais. O mesmo acontece com António Martins, da ASJP. A maioria dos intervenientes no palco da Justiça acredita, no entanto, que os recursos já existem nos próprios tribunais e que é tudo uma questão de os adequar ao que deve ser a função de gerir um tribunal. Não como se de uma empresas se tratasse, porque um tribunal "tem as suas especificidades e não existe para dar lucros ou para debitar sentenças - ou seja, estas devem ser bem dadas, caso contrário, o tribunal não está a cumprir a sua função", defende Fernando Jorge. Entre divergências sobre os princípios - públicos ou privados - a aplicar à gestão, todos estão de acordo que retirar das mas dos juízes funções para as quais não estão vocacionados é uma forma de lhes deixar mais tempo para julgar e despachar mais rapidamente. E que um tribunal pode ser gerido de forma mais adequada aos recursos de que dispõe. António MartinsPresidente da Associação Sindical dos Juízes
O responsável máximo de qualquer tribunal deve ser sempre um juiz, mas um gestor com capacidades e qualificações ajudaria a resolver muitos problemas.O mais provável é que o gestor venha mesmo do privado, porque não conheço nenhum quadro de gestores da Administração Pública onde se possa ir recrutar.
Rogério AlvesBastonário da Ordem dos Advogados
E a altura ideal para introduzir a figura do gestor, que imprima aos tribunais um outro tipo de gestão, que a pense e que a execute.Os critérios de gestão têm de ser diferentes, mais próximos dos que implementam na actividade privada, mas temos de acabar com a ideia de que o que é público é mau.
António ClunyPresidente do sindicato dos Magistrados do Ministério Público
Funções de gestor, já as têm o juiz presidente e os secretários judiciais. Não conheço nenhum tribunal do mundo que seja gerido por critérios de gestão privada empresarial.Se estivermos a falar dás reservas de papel, da água ou da luz, não me preocupa. Se falarmos da distribuição dos processos, isso já colide com princípios constitucionais.
Paulo Olavo CunhaAdvogado
O ideal era avançar com um modelo semelhante ao já adoptado para alguns hospitais, que sendo públicos, têm uma gestão privada.Pode haver abertura para uma privatização, desde que se salvaguarde sempre a publicitação da Justiça, que é fundamental preservar - tudo o que sejam poderes judiciais têm de ficar de fora.
Luis Cortes MartinsAdvogado
O gestor seria responsável, além dos recursos, pela gestão do processo. Não pela qualidade intrínseca, que cabe ao juiz.Sem violar o princípio do juiz natural, porque não sortear os processos por um número mais reduzido de secções? Não vale a pena distribui-los a juízes que não vão decidir com rapidez por terem demasiados processos em mãos.
Fernando JorgePresidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais
E importante definir de uma vez quem manda nos tribunais e quem manda no quê e deve haver gestores vocacionados apenas para a gestão.A tarefa não deve ser entregue ao sector privado, mas sim aos secretários judiciais, que conhecem o sistema como ninguém. Desde que, claro, lhes seja dada formação em gestão.
Desbloquear processos e diminuir as pendências"Um juiz que tenha nas mãos um complexo processo de branqueamento de capitais ou de tráfico de estupefacientes, tem de ter tempo para se preocupar com o mapa de férias dos funcionários? ou com a compra do papel para as impressoras?" Fernando Jorge, presidente do sindicato dos Funcionários Judiciais, coloca, nesta questão, o problema básico, cuja tentativa de resolução está na base da criação da figura do gestor do tribunal.
Os últimos dados disponíveis, relativos a 2005, indicam que o número de processos pendentes atingia, no final do ano, qualquer coisa como 1,83 milhões (ver gráfico). Números que já não surpreendem, mas que impressionam. As estatísticas da Justiça não permitem ainda fazer o levantamento dos números de 2006, mas ninguém acredita que a tendência seja no sentido da diminuição.
A reforma em curso concentra-se na forma de resolver o problema dos elevados níveis de litigância e de dar a volta aos processos que se acumulam nas secretárias dos juízes. Ao gestor serão entregues as funções administrativas e de gestão, mas, é ténue a linha que as separa das que deverão caber apenas ao juiz: as de julgas E hoje em dia, falta saber quem faz o quê. Dizem os funcionários e dizem os juízes. António Martins, da ASJP, diz que hoje em dia "um tribunal funciona como um condomínio sem administração". Ou seja, "os poderes que são atribuídos ao juiz presidente não são suficientes, excluindo, por exemplo, a gestão financeira ou a gestão dos funcionários, que compete ao secretário do tribunal e à Direcção-geral da Administração da justiça. O juiz assina ofícios, faz uma articulação com o secretário, mas depois este responde hierarquicamente à DGAJ, e não ao juiz presidente", explica.
Se estes aspectos até poderão ser consensuais, o mesmo já não se passa com a própria gestão dos processos. E com a distribuição, pelos vários juízes, dos novos conflitos que chegam à barra dos tribunais. O princípio do juiz Natural (ver caixa), pode ser posto em causa se for um gestor a fazer a distribuição, defendem os magistrados. Rogério Alves, bastonário dos advogados, defende que"a distribuição, como jurídico, compete ao juiz, mas como acto material, pode ficar com o gestor, que pode assegurar que um juiz não fique com demasiados processos". Os pormenores estão a ser estudados pelo Ministério da justiça, mas é certo que o Gestor, deverá dar uso às novas tecnologias para melhor gerir. Resta saber se será aceite uma das propostas do Compromisso Portugal que previa que o gestor pudesse enviar aos magistrados, alertas informáticos sempre que se estivesse a aproximar o fim de um prazo ou que um processo estivesse parado demasiado tempo.
O que é o Princípio do Juiz Natural
"Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em Lei anterior". O artigo 320 da Constituição da República Portuguesa (CRP) espelha assim o princípio fundamental do Juiz Natural, ou seja, o direito a que um processo seja julgado por tribunal definido como competente por lei anterior e sem possibilidade de afastamento do respectivo juiz. Assim, havendo mais do que um juízo no tribunal competente para a causa, este é obrigatoriamente distribuído tendo em conta o número de juízos existentes. É através desta distribuição que se designa o juiz competente. O acto é tanto mais importante que em processo penal, por exemplo, a falta de distribuição constitui nulidade insanável, já que contende com as regras de competência do tribunal.
In Jornal de Negócios

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