03 outubro 2006

Alteração do modelo administrativo não vai implicar fecho de tribunais

Hoje em dia são 230 comarcas, quase uma por cada um dos 308 municípios do País. No início de 2008 terão passado à história e serão substituídas por uma nova circunscrição territorial, cujo nome está ainda no segredo do Ministério da Justiça.
Seja qual for a escolha, apenas se contabilizarão 32, tantas como as NUT III, a divisão geográfica e territorial do país criada no final de 2002 e que começa, pouco a pouco, a servir de base a vários serviços públicos, como a Saúde ou a Segurança Social.
A grande questão é saber se acabarão por ser encerrados tribunais. Conde Rodrigues, secretário de Estado da Justiça de Alberto Costa, garante que não. Cada uma das NUT III terá um tribunal principal, "uma espécie de juízo" a partir do qual serão geridos em rede os restantes tribunais satélite, os que actualmente existem nas várias comarcas. Todos se manterão, mas poderá mudar a "oferta". Ou seja, como a aposta é a especialização, um tribunal generalista pode passar a ser especializado.
"Cada NUT III terá um juiz de execução e um tribunal de família e menores", explica Conde Rodrigues. A maioria deverá também ter tribunais administrativos e fiscais, devendo, para o efeito, ser recrutados novos magistrados para esta especialidade. Assim se assegurará que em cada nova circunscrição não faltarão tribunais para as várias áreas.
E, no entanto, transformar um tribunal que agora é generalista num tribunal especializado - de família e menores, por exemplo - implicará, necessariamente, uma alteração significativa na "oferta" de Justiça disponível na localidade em questão. Ou seja, quem antes tinha um tribunal onde podia tratar de problemas cíveis e de crime passa a ter de ir a outra localidade, ainda que mais ou menos próxima, para poder interpor uma acção.
Algo que pode, em última análise, prejudicar quem quer exercer os seus direitos? É possível, admite António Cluny, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. "Se em comarcas próximas será pouco importante deslocar tribunais de um sítio para o outro, noutras zonas, como o Alentejo, poderá significar afastar as pessoas do exercício do seu direito", diz.
Fernando Jorge, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, partilha desta preocupação: "Há NUT que são complicadas, na região Norte ou Beira Interior, por exemplo, onde as acessibilidades são mais difíceis, o que poderá criar algumas dificuldades de deslocação das pessoas". Desta forma, sublinha, "poderá ser posta em causa esta Justiça de proximidade que agora ainda é possível".
Garantir o acesso à Justiça
Esta é uma preocupação de todo o painel contactado pelo Jornal de Negócios. Aguiar Branco, ex-ministro da Justiça do PSD, defende no entanto que ainda há zonas onde seria possível cortar, e avança com um exemplo: "Aveiro, a cinco minutos de Ponte da Barca pela via rápida, está a rebentar pelas costuras, enquanto Ponte da Barca tem excesso de magistrados e de equipamento para o número de processos que tem.
Aqui havia margem para cortar", ainda que "cada caso tenha de ser avaliado em particular. Entre as vozes ouvidas pelo Jornal de Negócios há, no entanto, consenso quanto ao diagnóstico.
A começar pelos advogados. "Há grande concentração de meios em determinadas regiões, que contrasta com o menor número de processos de outras circunscrições", refere o bastonário Rogério Alves. Também António Martins, da Associação sindical dos Juízes, admite que a "desactualizada" divisão em comarcas faz com que "haja tribunais com dimensão geográfica e conflitualidade judicial que não justificam uma estrutura a tempo inteiro". Mudar sim, diz, mas encontrando um "equilíbrio, para que a Justiça continue a ser acessível a todos os cidadãos".
Prós e contras
O diagnóstico é consensual: há tribunais com demasiados processos, outros com muito poucos e é urgente uma nova organização, que permita uma melhor gestão e racionalização de meios humanos e logísticos. As posições sobre as medidas a implementar divergem nalguns pontos, mas quase todas as vozes defendem que o caminho não passa por encerrar tribunais.
A excepção vem do PSD, com o antecessor de Alberto Costa na Justiça, José Aguiar Branco, a defender, sem meias medidas, que é possível e desejável encerrar tribunais. No quadrante político oposto, o advogado Ricardo Sá Fernandes sustenta que não se deve "mexer no Mapa Judiciário", sob pena de contribuir ainda mais para a já reconhecida desertificação de regiões do interior do País. Por agora, pouco se sabe ainda sobre o verdadeiro alcance desta reforma.
Porém, é uma das medidas consagradas no Pacto para a Justiça, recentemente assinado entre os dois maiores partidos com assento parlamentar. E foi também uma das sugestões apresentadas pelo compromisso Portugal na reunião do Beato de Setembro último.
António Martins - Presidente da Associação Sindical dos Juízes
A actual orgânica judiciária não corresponde à realidade demográfica geográfica e conflitual do país; qualquer mudança é positiva, desde que se adeqúe à realidade. Não pode simplesmente começar a fechar-se tribunais, obrigar as pessoas a ter de se deslocar para exercer os seus direitos e afastá-las da Justiça.
Rogério Alves – Bastonário da Ordem dos Advogados
Não há tribunais a mais ou a menos. Estão é mal distribuídos. A reforma vai permitir apostar na especialização e vai levar a repensar recursos humanos e materiais. Isso é positivo. A solução, contudo, não passa por encerrar comarcas. O método não deve ser a extinção, mas a reformatação.
Ricardo Sá Fernandes – Advogado Uma reforma que implique fechar tribunais só contribuirá para uma ainda maior desertificação do mundo rural. Estou de acordo com o diagnóstico [sobre o Estado da Justiça], e com algumas das medidas propostas, mas temo que algumas das outras nos façam caminhar para o deserto. Deixem em paz o mapa judiciário.
José Aguiar Branco – Advogado e ex-ministro da Justiça
Esta revisão do mapa é estruturante e fundamental, e é positivo que esteja no pacto para a Justiça, mas devia ser mais ambiciosa. O PSD preconizava uma alteração do número de tribunais. O encerramento de, pelo menos, 100 era possível e desejável. Porém, é claro que isso choca com lógicas de poder autárquico. A proposta do Governo passa por conciliar coisas que são inconciliáveis.
António Cluny – Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
Que havia necessidade de rever, havia, e a revisão deve obedecer a princípios de economicidade de meios e de especialização dos tribunais. Mas que isso não signifique afastar os cidadãos dos tribunais. E preciso ter em atenção as especificidades de cada zona, porque em algumas, sobretudo no interior do país, claro, a existência de tribunais é uma forma de desenvolvimento social muito importante.
NUT piloto avançam em 2008
A geografia do país está hoje dividida por um conjunto de 230 comarcas - no mapa do lado esquerdo destacam-se apenas os concelhos que não têm tribunais. Esta divisão em circunscrições que vêm já de finais do século XIX, e que sempre teve por estrutura nuclear essencial o concelho, vai sofrer uma alteração radical.
Será substituída por uma outra, mais alargada, que coincidirá com as 32 NUT III e que, garante o Executivo, permitirá distribuir melhor os meios humanos e materiais, apostando largamente na especialização. Ao mesmo tempo, a área de actuação dos tribunais de recurso (relação) passará a coincidir com as NUT II, que se dividem em Norte, Centro, Lisboa e vale do Tejo, Alentejo e Algarve.
O Supremo Tribunal e Justiça e o Supremo Tribunal Administrativo manterão, naturalmente, o seu raio de acção por todo o país. As linhas gerais estão traçadas e constam já do Pacto para a Justiça, mas os pormenores e todas as alterações legislativas necessárias só ficarão prontas no primeiro semestre de 2007.
No início de 2008, o sistema estará operacional, garante Conde Rodrigues, secretário de Estado da Justiça. "Por uma questão de precaução, vamos avançar com uma ou duas NUT -piloto, para durante seis meses a um ano testar e avaliar o modelo e só depois estenderemos a todo o País", conclui o governante.
In Jornal de Negócios

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