03 outubro 2006

Editorial nº 9 do SMMP

Noronha do Nascimento e Souto Moura são figuras de cujas ideias e atitudes não é difícil discordar. De ambos, esta e outras Direcções do SMMP divergiram repetidas vezes.
De ambos dizem, porém, magistrados, advogados, políticos e todos os que com eles privaram ou contactaram que são ilustres juristas, grandes profissionais do foro e pessoas de cultura e clareza de ideias e acções.
Nos últimos dias, todavia, os directores dos mais significativos jornais diários têm sobre eles escrito coisas que, até hoje, poucos se atreveram a dizer sobre o desempenho de qualquer magistrado.
De um PGR, recordamos apenas, de semelhante, os diatribes raivosos que os jornais de extrema-direita “A Rua” e a “Barricada” dirigiam ao Conselheiro Arala Chaves, quando ele insistia na necessidade de continuar a perseguir judicialmente difamações e injúrias inseridas em artigos de carácter fascista ou racista que esses periódicos divulgavam.
Quanto aos juízes, só no período revolucionário foi possível ler idêntica linguagem em órgãos da extrema-esquerda de inspiração estalinista – então frequentados por um desses directores –, quando os magistrados judiciais teimaram, apesar dos riscos pessoais, em manter em funcionamento os tribunais e as regras do estado de direito num caso de homicídio que aconteceu no Alentejo.
O que esses responsáveis de jornais têm escrito sobre estes dois magistrados não seria, porém, compreensível e sequer socialmente imaginável se, num outro plano de discursos, não se tivesse verificado, antes, a mais corrosiva campanha de que há memória no país contra a magistratura e os tribunais.
Com efeito, até há bem pouco tempo, vinha-se assistindo à descredibilização propositada, sistemática e destemperada dos magistrados enquanto profissionais, e do poder judicial enquanto instituição, por quem devia ter responsabilidades na coesão e na articulação dos poderes do estado.
Esta campanha e o seu tom não representam, porém, assim, como alguns serão tentados a pensar, uma mera retaliação pela acção da Justiça num ou noutro processo concreto.A crítica dirige-se, de facto, à própria ideia e utilidade do sistema de Justiça que edificámos depois do 25 de Abril.
Ela traduz-se, realmente, na tentativa de suplantar o paradigma constitucional, legal e judiciário, imaginado e construído para o estado social de direito, de acordo com os valores da Constituição e a primazia da soberania nacional.
Num momento em que muitas das administrações dos países se converteram mais em agências de competitividade internacional dos grandes interesses económicos do que em executivos capazes de projectar e executar a Constituição e os direitos votados no Parlamento ou nos fóruns internacionais, a manutenção de um tal sistema judiciário – mesmo que relativamente ineficaz e demorado, como é, na verdade, o nosso – constitui-se, pela sua autonomia, como um obstáculo intransponível à violação livre de toda a ordem de direitos humanos e sociais e em espelho que reflecte más consciências e piores comportamentos legais e políticos.
Isto não invalida a urgência de uma reforma da Justiça, que todos sabemos necessária, mas que, em consequência, em caso algum será neutra e pode ter, por isso, amplitudes, intenções e significados múltiplos.
Daí, também, que o “Pacto”, com as aberturas que deixou e as leituras que permite, possa, apesar de tudo, constituir um espaço de ponderação e de trégua que contenha e evite o desvario dos piores capatazes daqueles interesses.
Não foi pois por acaso que alguns destes artigos insultuosos foram escritos neste momento. Eles têm uma intenção precisa de condicionamento, não só dos magistrados, mas, também e principalmente, dos agentes políticos que hão-de consubstanciar o “Pacto” em leis e medidas concretas. Eles procuram, por isso, dividir os “bons” dos “maus” e determinar, a partir dessa distinção, quais as boas e as más decisões políticas e judiciais, legitimando-as ou não em função daqueles interesses. Serge Halimi, um conhecido jornalista francês, fazendo referência, em obra recente, a um ensaio de Paul Nizan, caracteriza os media do seu país como Les Nouveaux Chiens de Garde. Pretende ele, rebatendo a ideia da subsistência da tradicional autonomia intelectual dos media, que, conhecendo-se as ligações e dependências económicas, familiares, políticas de directores de jornais e televisões e dos seus principais jornalistas e comentadores ou, até, dos convidados a participar, normalmente, nos diferentes programas, não nos podemos espantar com o uniforme e militante sentido ideológico da mensagem veiculada pela maioria desses órgãos de comunicação.
No entanto, talvez que o ensinamento que melhor possamos retirar do que Halimi ali expõe se contenha numa afirmação de Noam Chomsky que, perguntado como é que a elite controla os media, terá respondido: «Como controla ela a General Motors? A questão não se coloca. Ela pertence-lhe.»
Mas, se esta é, porventura, a explicação mais óbvia e cruel para o panorama do condicionante e agressivo discurso monolítico que os media de hoje e os seus donos nos querem impor, importa, precisamente, encontrar para ele uma resposta. Esta terá de traduzir-se numa atitude cívica e moral de reflexão, crítica, abertura e discussão ampla e socialmente participadas sobre a Justiça, as magistraturas e as suas dificuldades e omissões, não cedendo, em caso algum, às falsas lisonjas ou permitindo a submissão e o medo a que nos querem obrigar.
Recordemos, por isso, os versos de um poema já antigo de Félix Cucurull, um poeta catalão amigo de Portugal: «Não me engraxem os sapatos /nem me cortem o cabelo (…) hoje vomitei / as côdeas que me deram. /A esmola dava-me volta / ao estômago e deixava-me / um gosto amargo na boca. (…) / Porém rejeito o preço / que nos querem impor / estes homens que ladram / pela boca dos seus cães.»
In SMMP

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